Sobretudo nos últimos anos, o vegetarianismo é uma prática cada vez mais presente em Portugal, seja o ovo-lacto-vegetarianismo (que exclui da alimentação produtos primários de origem animal, como a carne e o peixe, mas mantém produtos secundários como o leite e os ovos), ou o vegetarianismo estrito (ou veganismo), um estilo de vida que exclui qualquer produto de origem animal, primário ou secundário, da alimentação, do vestuário e de todos os aspetos da vida diária. Há cada vez mais pessoas a retirar produtos de origem animal da sua alimentação, seja carne, peixe, leite ou outros.
Muitos restaurantes em Portugal têm hoje opções vegetarianas, por vezes até mesmo tascas tradicionais, o que não era, de todo, comum há cerca de dez ou cinco anos atrás. O vegetarianismo já não é uma prática marginal na sociedade portuguesa e tornou-se uma parte maior da consciência coletiva do país. Os seus benefícios ambientais e de saúde são cada vez mais reconhecidos pela ciência. Há também uma crescente preocupação ética e política em relação ao bem-estar e dignidade básica dos animais. Estes estão, nas últimas décadas, finalmente (e também de um modo crescente) a ser reconhecidos por uma fração considerável da sociedade como seres conscientes, com capacidades cognitivas profundas, e capazes de experienciar emoções complexas e laços sociais. Assim, cada vez mais pessoas consideram o seu abate e exploração eticamente condenáveis.
Também a cultura asiática está cada vez mais presente no Ocidente e, recentemente, a globalização tem sido um fator relevante para a chegada da cultura oriental a Portugal. O próprio vegetarianismo foi, em parte, intensificado no Ocidente pela chegada de valores hindus e budistas durante o movimento hippie e New Age na segunda metade do século XX. Há cada vez mais seguidores do budismo no mundo ocidental e também em Portugal, sejam imigrantes de países asiáticos como Tailândia, a China e Taiwan, sejam portugueses que se tenham convertido ao budismo. Vários centros budistas foram fundados no país nas últimas décadas como o Mosteiro Sumedharama, na Ericeira, a organização Buddha’s Light International Association, que marca a sua presença sobretudo em Lisboa, e templos tibetanos como o da Fundação Kangyur Rinpoche na Serra de Monchique, no Algarve.
Cada vez se fala mais sobre o budismo em Portugal, e há uma consciência cada vez maior acerca da sua diversa expressão religiosa no país. As pessoas já sabem que o budismo é uma religião (ou filosofia) pacifista e ligada à meditação, por exemplo. No entanto, há também muitas ambiguidades que os portugueses podem não compreender totalmente acerca do budismo. Uma dessas questões tem a ver com o vegetarianismo. O budismo defende e pratica o vegetarianismo? Se o Buda pregou a importância da compaixão e da não-violência, como é que os budistas se posicionam no que toca à exploração e ao abate de animais para consumo humano? Neste artigo essas mesmas questões serão exploradas.
A resposta a esta questão é um pouco mais complexa do que apenas um “sim” ou um “não” absolutos, e apesar do budismo encorajar fortemente o vegetarianismo, nem todos os budistas são, necessariamente, vegetarianos. A versão curta da resposta é que sim, o Buda defendeu o vegetarianismo e a proteção dos animais, e o budismo apoia e promove os muitos benefícios ambientais, éticos e de saúde que uma dieta e estilo de vida vegetariano promovem. O amor universal e a compaixão são valores centrais da ética budista, que encoraja um estilo de vida que promova o bem-estar de “todos os seres”, incluindo todos os animais, até mesmo os insetos e outras criaturas pequenas. A interdependência dos fenómenos da realidade, enquanto conceito filosófico fundamental da doutrina budista, também se expressa através da condenação do impacto negativo que a humanidade tem no ambiente, e que é intensificado pelas indústrias pecuária e piscatória. Muitos movimentos budistas contemporâneos condenam estes efeitos negativos da exploração animal no meio-ambiente. Na verdade, o vegetarianismo, enquanto parte fundamental da cultura e espiritualidade indiana, foi principalmente difundido pelo subcontinente indiano por Ashoka, um imperador do século III AEC que, após converter-se ao budismo, promoveu intensamente o vegetarianismo pela Índia e criou alguma legislação a favor do bem-estar dos animais.
Ainda assim, a prática do vegetarianismo no contexto budista depende de tradição para tradição. O budismo manifestou-se em várias tradições ao longo da sua longa história mas, no presente, pode ser dividido em três movimentos principais:
O budismo theravada, “a Doutrina dos Anciãos”. É a tradição mais ortodoxa do budismo, focando-se na renúncia. No mundo contemporâneo manifesta-se sobretudo no Sri Lanka e no sudeste asiático (Tailândia, Myanmar, Laos, Camboja, etc.).
O budismo mahayana, o “Grande Veículo”. É uma tradição que enfatiza o amor e compaixão universais por todos os seres sencientes. Manifesta-se sobretudo na Ásia oriental (China, Taiwan, Japão, Coreia, etc.). O budismo zen japonês é a escola mahayana mais popular entre os ocidentais.
E o budismo vajrayana, o “Veículo Indestrutível”. É a tradição esotérica do budismo. Manifesta-se sobretudo no Tibete, Nepal, Butão e Mongólia.
Como é que o vegetarianismo se manifesta em cada uma destas tradições?
O budismo theravada encoraja o vegetarianismo, mas não é estritamente vegetariano. O primeiro preceito ético que qualquer budista, leigo ou monge, toma, é o de se abster de matar intencionalmente qualquer ser senciente. No entanto, isto não quer dizer que os budistas theravada estão proibidos de comer produtos de origem animal.
Os monges theravada seguem estritamente as práticas da ordem monástica originalmente formada pelo Buda, de acordo com o Cânone Pali. Esta ordem é de natureza mendicante, o que significa que os monges estão proibidos de ter posses (para além das suas vestes e malga) e de acumular comida, e dependem da generosidade diária dos seus seguidores leigos para se alimentarem. Isto significa que os monges theravada devem mendigar a sua refeição todos os dias. O objetivo desta prática é garantir que os monges mantenham uma atitude de renúncia e um modo de vida simples e minimalista. Para além disso, pretende impedir que as comunidades monásticas se isolem demasiado das comunidades leigas à sua volta, visto que uma das funções principais dos monges é partilhar os ensinamentos do Buda com os seguidores leigos. Assim, os monges theravada dependem totalmente de ofertas alheias diárias e, de um ponto de vista prático, restringirem-se a uma dieta totalmente vegetariana e recusar produtos de origem animal da sua rota de mendicância poderia restringir perigosamente a sua alimentação. No entanto, se o monge receber comida vegetariana quando está a pedir, ele “deverá receber essa comida com ‘gratidão’ – especialmente se isso significa que menos animais são abatidos” (Bhikkhu Arieysako, Código de Disciplina monástica dos Bhikkhus: Um Guia para Leigos, página 67).
Existem também algumas regras que pretendem impedir que o possível consumo de produtos de origem animal por parte dos monges theravada encoraje os maus-tratos e o abate intencional dos animais. Se um monge, ao receber carne (ou peixe, ou qualquer produto primária de origem animal), quando está a pedir a sua refeição diária, vir, ouvir ou desconfiar que o animal foi abatido de propósito para ele, ele está proibido de a aceitar. Para além disso, no Nobre Caminho Óctuplo, o conjunto de práticas espirituais que o Buda formulou para os seus discípulos seguirem, existe uma secção da disciplina ética chamada “modo de vida correto”. Nesta secção, dirigida sobretudo a budistas leigos que necessitam de uma profissão ou um meio de subsistência para sobreviver, o Buda defende a necessidade de uma ocupação que não traga sofrimento aos outros seres, humanos e animais, e menciona que existem alguns meios de subsistência que, por perturbarem outros seres, não são éticos, entre os quais o comércio de carne ou de seres vivos. Para além disso existem alguns tipos de carne estritamente proibidos pelo Buda como a carne de seres humanos, de elefantes, de cavalos, cães, cobras, certos grandes felinos, entre outros.
O budismo mahayana é, em muitos aspetos, diferente do budismo theravada. Apesar do budismo theravada também enfatizar a compaixão, esta questão é radicalmente central no Grande Veículo do budismo. O modelo por excelência do praticante mahayana é o bodhisattva, um ser cuja compaixão pelos outros é a sua preocupação e prática espiritual central. Deste modo, no budismo mahayana, a prática do vegetarianismo é uma regra estrita, e comer carne, peixe ou qualquer produto primário de origem animal (ou mesmo secundário, em algumas tradições) é proibido. Isto deve-se também ao facto de ser uma tradição com um ênfase menor na disciplina monástica do que o budismo theravada, adaptando-se assim melhor a budistas leigos que têm um poder de decisão maior em relação ao que comem. No budismo mahayana há também bases filosóficas para a abstenção do consumo de animais, entre elas, a crença na existência de uma Natureza de Buda (uma espécie de nirvana inato mas não manifestado) possuído coletivamente por todos os seres sencientes, inclusive animais. Outra base filosófica é a questão de ter uma doutrina muito focada em torno da crença numa profunda interdependência (ou mesmo não-separação) entre todos os seres sencientes. Há mesmo casos de comunidades budistas que seguem uma dieta vegetariana estrita (ou seja, vegana), como é o caso da comunidade de seguidores do mestre budista vietnamita Thich Nhat Hahn, que foi um grande promotor do veganismo.
A atitude do budismo vajrayana em relação ao vegetarianismo é consideravelmente mais flexível. O budismo vajrayana, de maneira geral, e também com base nos conceitos de compaixão e interdependência, desencoraja fortemente o consumo de carne. Shabkar Tsogdruk Rangdrol, um mestre budista desta tradição que viveu nos séculos XIIX/XIX, escreveu A Comida dos Bodhisattvas, obra na qual condena convictamente e repetidamente o consumo de carne, relacionando-o com vários tipos de males. Ainda assim, há praticantes do budismo vajrayana que consomem carne e outros produtos de origem animal. O próprio XIV Dalai Lama, o célebre líder espiritual do budismo tibetano, apesar de promover o vegetarianismo, não é absolutamente vegetariano e come carne em algumas ocasiões. Há também o caso de certos rituais tântricos do budismo vajrayana nos quais certas práticas geralmente proibidas, como o sexo e o consumo de carne e álcool, são realizadas ritualmente. Outra razão que pode explicar a maior flexibilidade do budismo vajrayana face ao vegetarianismo é o facto desta tradição se ter desenvolvido sobretudo no país geograficamente sinuoso e isolado que é o Tibete, onde a produção agrícola é muito precária devido à natureza montanhosa do solo. A culinária tradicional tibetana desenvolveu-se dependente de produtos de origem animal, como carne e leite (e derivados) de iaque. No entanto, após a invasão do Tibete por parte da China e da diáspora dos tibetanos para os países em redor, a Índia tornou-se um dos lares principais de grande parte dos refugiados tibetanos, e a maioria dos centros budistas-tibetanos na região indiana adota a rica culinária indiana na qual o vegetarianismo é praticado abundantemente.
Afinal de contas, o budismo defende o vegetarianismo, ou não? Sim, como regra geral, o budismo defende o vegetarianismo, mas não de um modo absoluto. Esta questão varia de acordo com a tradição. No fundo, apesar do vegetarianismo ser muito encorajado devido aos seus muito benefícios para a prática espiritual e para um modo de vida ético e íntegro, nem todas as comunidades ou praticantes budista adotam o vegetarianismo.
Bibliografia
Ariyesako, Bhikkhu. Código de Disciplina monástica dos Bhikkhus: Um Guia para Leigos. 1999-2013. https://sumedharama.pt/ensinamentos/ensinamentos-publicacoes/
Ruegg, D. Seyfort. “Ahiṃsā and vegetarianism in the history of Buddhism.” In Buddhist studies in honour of Walpola Rahula, pp. 234-241. London: Gordon Frazer, 1980.
Spencer, Colin. Vegetarianism: a History. London: Grub Street, 2016.
Zubrzycki, John. Breve História da Índia. Lisboa: Editorial Presença, 2023.
Fontes online
A Routine Day of HH The Dalai Lama. Acedido a 24 de Janeiro de 2024. https://web.archive.org/web/20090224214736/http://www.dalailama.com/page.52.htm .
Thich Nhat Hahn on Veganism. Christian Koeder website. Acedido a 24 de Janeiro de 2024. https://www.christiankoeder.com/2022/01/thich-nhat-hanh-on-veganism.html .
Inserido em: 2024-03-25 Última actualização: 2024-03-25
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