Conforme o decreto-lei n.º 314/2003 de 17 de Dezembro, promulgado pelo então Primeiro-Ministro José Manuel Durão-Barroso, os canis e gatis municipais são obrigados a abater os animais?
A resposta é não. Mas o que é certo é que esses abates ocorrem com frequência, não raras vezes, contra a vontade das próprias pessoas que trabalham nos canis e gatis municipais, das que com eles colaboram e das que lutam desesperadamente em busca da salvação da vida de mais um animal aí mantido.
Os doentes e idosos são os animais primeiramente escolhidos para abate. Uma forma de proporcionar a morte ao animal, à qual algumas edilidades já recorrem, é por meio de uma injecção de soro letal. No entanto, é com bastante frequência que ocorrem, nos canis e gatis municipais, abates de tantas vidas de animais saudáveis e com imenso para dar se tivessem um dono, uma casa aconchegante, um lar...
Tal não acontece devido ao decreto acima mencionado, pois esse não obriga legalmente à morte dos animais. No entanto, fica mais conveniente votá-los a esse destino cruel do que zelar pela sua saúde. Muitas considerações se poderiam fazer sobre as causas de um canil municipal exceder a lotação máxima e devido a esse motivo recorrer ao abate selectivo e seriado de animais, mas isso não nos cabe aqui referir. O facto é que existe um decreto-lei que regulamenta a forma como se processa o esquema dos abates num canil.
No artigo 8.º do referido decreto estipula-se o seguinte para a captura de cães e gatos vadios ou errantes: “1 - Compete às câmaras municipais, actuando dentro das suas atribuições nos domínios da defesa da saúde pública e do meio ambiente, proceder à captura dos cães e gatos vadios ou errantes, encontrados na via pública ou em quaisquer lugares públicos, utilizando o método de captura mais adequado a cada caso, estabelecido em conformidade com o previsto no Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, fazendo-os recolher ao canil ou gatil municipal.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, as câmaras municipais devem munir-se de infra-estruturas e equipamento adequados e de pessoal devidamente preparado para o efeito, bem como promover a correcção das situações que possibilitam a subsistência destes animais na via ou quaisquer outros lugares públicos.”
Este é um dos argumentos principais para a captura dos animais vadios. Com efeito, a propagação de determinadas doenças, tais como as zoonoses (doenças como a leishmaniose e dilofilariose, entre outras) e a raiva, são muito perigosas para a saúde pública, quer para as pessoas, quer para os restantes animais. O exemplo mais flagrante é o risco de um cão vadio morder uma pessoa que passa na rua e, sendo portador de raiva, conduzir dessa forma a pessoa até à morte. Trata-se, pois, de uma questão de responsabilidade das próprias autarquias zelar pela qualidade de vida dos seus munícipes. Mas a lei é, em muitos casos, favorecedora em prol da espécie humana, mas pouco cuidadosa no que concerne ao trato com os animais que são capturados e levados para um canil municipal.
Diz-nos o artigo 9.º que uma vez chegados ao canil ou gatil municipal, os cães e gatos são examinados pelo médico veterinário nomeado pela edilidade em questão e, com base na sua observação, fará um relatório que decidirá sobre o destino desses animais recém-chegados. Em caso de não reclamação de um animal pelo período mínimo de oito dias, o mesmo vai para abate como medida de profilaxia e combate contra a propagação de doenças infecto-contagiosas que ponham em causa a saúde das pessoas e de outros animais. No entanto, o próprio artigo acaba por ser um contra-senso, dado que a alínea 1 do artigo 9.º nos refere:
“1 - Os cães e gatos recolhidos em canil ou gatil municipal, nos termos do disposto no artigo 3.º e do artigo anterior, são obrigatoriamente submetidos a exame clínico pelo médico veterinário municipal, que elabora relatório e decide do seu ulterior destino, devendo os animais permanecer no canil ou gatil municipal durante um período mínimo de oito dias.”
E mais à frente, na alínea 5 desse mesmo artigo se expõe o seguinte: “5 - Em todos os casos em que não tenham sido pagas as despesas e coimas referidas no n.º 2, bem como quando não estejam preenchidas as condições previstas no n.º 3, nem seja reclamada a entrega dos animais nos prazos fixados, podem as câmaras municipais dispor livremente dos animais, tendo em conta a salvaguarda de quaisquer riscos sanitários para as pessoas ou outros animais, podendo mesmo ser decidido o seu abate pelo médico veterinário municipal, através de método que não implique dor ou sofrimento ao animal .”
Ora o texto destacado acaba por ser um contra-senso na medida em que, por um lado, os animais são submetidos a exames clínicos e, caso estejam saudáveis, permanecem no canil pelo prazo mínimo de 8 dias; mas, por outro lado, diz-se que “as câmaras municipais [podem] dispor livremente dos animais”. De acordo com a última afirmação, as câmaras municipais devem tomar as medidas de profilaxia necessárias, mas as quais se reduzem ao próprio abate do animal, pois são as próprias câmaras que, enquanto o animal não é reclamado por ninguém, têm de suportar as despesas com a alimentação, resguardo, higienização e tratamento clínico-veterinário dos próprios animais em cativeiro. Assim, dado ser uma conveniência mais eficaz para o Estado, acaba por ser mais barato decidir pelo abate do que continuar a manter o animal no canil, mesmo estando em óptimas condições de saúde.
O recurso ao abate sistemático torna-se, assim, numa prática comum muito conveniente aos interesses do Estado.
Devido ao número exagerado de animais errantes que vagueiam pelas ruas do país, têm sido frequentes os casos de zoonoses em determinadas zonas das orlas costeiras, bem como em terras do Sul de Portugal, com a predominância do Baixo Alentejo e Algarve.
Quanto mais animais abandonados, mais aumenta a cadeia de errantes com destino aos canis municipais. A possibilidade de um animal ser recolhido e levado para uma associação de protecção animal torna-se num bem raro e precioso, mas que quando acontece contribui, sem dúvida, para uma maior probabilidade de adopção bem sucedida.
Por isso, existem já propostas concretas por parte de grupos de defesa animal para lutar contra o recurso aos abates de animais em canis e gatis municipais. Estes grupos sugerem como alternativa a sensibilização para a adopção dos animais mantidos pelas Câmaras e, por outro lado, a luta contra o não-abandono dos animais. Requerem-se, pois, donos conscientes para adoptar animais, em especial para aqueles que vêm directamente de um canil municipal, pois os animais também têm sentimentos.
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