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"120 em 60”: Práticas e atitudes de trabalhadores para com animais num matadouro português, publicado em versão integral na revista Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 92, 2020, DOI 10.7458/SPP20209218139
Este estudo procura compreender as práticas e atitudes de trabalhadores que lidam com o abate e desmancha de animais num matadouro. Para o efeito, fez-se trabalho de observação, complementado com o uso de registos fotográficos, durante o 'encaminhamento', 'atordoamento', 'pendura', 'sangria' e 'desmancha' dos animais na 'linha de abate'; bem como o método de análise qualitativa que requereu entrevistar oito indivíduos: duas mulheres e seis homens.
Embora os trabalhadores reconheçam os animais como seres sensíveis, a operacionalização das suas tarefas na ´linha de abate' está dependente de estratégias que requerem objetificação e distanciamento emocional. Foram também evidenciadas atitudes conflituosas relacionadas com determinadas espécies de animais. O contexto laboral (matadouro), o tempo despendido, as tarefas desempenhadas, a espécie dos animais, sobretudo o género e as trajetórias socioculturais dos trabalhadores destacaram-se como fatores predominantes de influência nas práticas e atitudes apuradas.
Palavras-chave: práticas, atitudes, indivíduos, suínos, matadouro.
Abrindo uma ínfima brecha de um mundo praticamente impenetrável, esta pesquisa pretende contribuir para a compreensão das relações entre humanos e os animais, tornando visíveis algumas das práticas rotineiras que têm lugar num matadouro português. Os objetivos baseiam-se na compreensão:
(1) das práticas adotadas durante o ‘maneio’, ‘abate’ e ‘desmancha’ de animais.
(2) da complexidade das atitudes dos trabalhadores que operam com estes animais;
(3) das trajetórias laborais, formas de organização social na ‘linha’ de abate, particularmente a pertinência da divisão sexual do trabalho.
Este trabalho de investigação implicou a adoção de três passos metodológicos:
(a) aplicabilidade de entrevistas semiestruturadas a oito trabalhadores (seis homens + duas mulheres) que operam com animais. Foram aplicadas individualmente, questionando (oralmente) a amostra sobre o tempo de atividade; motivações; práticas adotadas; memórias; tarefas executadas; formas de organização social geradas em torno do abate e desmancha dos animais; eventuais dilemas éticos em abater determinados animais; se consideram as tarefas difíceis; etc.
(b) através de trabalho presencial na ‘linha de abate’, onde foi observada a performatividade dos inquiridos durante o ’encaminhamento’, ‘atordoamento’, ‘sangria’ e ‘desmancha’ de sessenta e cinco animais suínos. Fez-se uso do diário de campo e do registo fotográfico enquanto ferramentas complementares dos registos de observação.
(c) conversas constantes, presenciais e por email, com as duas trabalhadoras (técnicas de qualidade) do matadouro que, durante o processo da pesquisa, responderam a todas e quaisquer dúvidas que foram surgindo.
Para os indivíduos da ‘linha’, a indiferença, a objetificação e o desapego constituem-se como atitudes estratégicas (algumas verbalizadas) que permitem a operacionalização das tarefas relacionadas com o ‘abate’ e ‘desmancha’ dos animais. Adicionalmente, o contexto laboral (i.e.: matadouro), o tipo de práticas estipuladas pela classe dirigente, a legislação em vigor, as motivações económicas, sobretudo o género, consubstanciam-se como fatores influentes nas formas de atuação dos trabalhadores que lidam com os animais. Praticamente todos os trabalhadores da ‘linha’ foram, durante a infância, orientados e encorajados, através da observação e prática, a participar em atividades que envolviam a exploração e a morte dos animais.
É no matadouro que a objetificação dos animais atinge o seu máximo grau, saltando à vista o seu estatuto ambíguo, em que são concebidos e tratados como coisas vivas. Foi observado, documentado, até verbalizado pelos trabalhadores e pelo departamento de qualidade, que os animais experienciam dor física, lesões, angustia, medo, frustração, stress, durante o seu ‘encaminhamento’, ‘pendura´ e ‘atordoamento’ – o que contraria qualquer tipo de premissa em relação ao seu ´bem-estar´.
Embora os trabalhadores façam uso da polivalência, trocando muitas vezes de funções na ‘linha’, as suas tarefas acarretam riscos para a sua segurança: para aqueles que lidam com os comportamentos imprevisíveis dos animais vivos (sobretudo os de grande porte, quando experienciam situações de stress); e para aqueles que lidam com os animais já mortos, cujas monótonas tarefas envolvem maquinaria pesada e objetos cortantes.
É investigador integrado no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia – Instituto Universitário de Lisboa. Os atuais interesses de investigação estão centrados nas representações sobre os ‘animais de produção’ oriundas da cultura dominante. Assume-se, complementarmente, um particular interesse em compreender as práticas e atitudes dos indivíduos (humanos) que lidam com estes animais, quer em contextos de exploração animal, quer através das práticas que envolvem o seu consumo.