O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: "É a vida..."
(Manuel António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, 1999)
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