O meu interesse pela nutrição teve um papel fundamental como primeiro passo, ainda que longínquo, em direcção ao vegetarianismo. Situo o início desse interesse nas aulas da disciplina da ``Saúde`` da escola secundária, durante as quais comecei a aperceber-me que a prevenção das doenças através da alimentação cuidada (quando possível) era muito mais eficaz do que qualquer tratamento. Os novos conhecimentos aliados a infelizes exemplos familiares de doenças evitáveis e tendência para a obesidade fizeram crescer a vontade de saber cada vez mais acerca dos alimentos, de hábitos saudáveis de vida e de saúde em geral. Nunca tive hábitos alimentares semelhantes aos dos colegas de então, pois tive sempre a noção de que o pequeno‑almoço, bem como o meio da manhã e o lanche eram importantes, além das chamadas refeições principais. Também nunca gostei de guloseimas, mas infelizmente não conseguia ingerir vegetais nem fruta, apesar da constante insistência da família.
Assim, a minha alimentação era bastante monótona e não tinha variedade. Muitas vezes não me dava gosto pensar no que seria o almoço ou o jantar pois só conseguia comer massa, carne de vaca, frango assado, uma ou duas variedades de peixe frito (só o leve cheiro do cozido e grelhado era sinónimo de vómitos, o que ainda hoje se mantém) e pouco mais. Não me sentia bem e andava muitas vezes enjoada, mas nem sequer imaginava porquê.
Com a informação adquirida dispersamente (ainda demoraria bastantes anos a ter acesso à Internet) a casa recebeu um saco de soja picada pela primeira vez. Para tentar melhorar a qualidade e variedade da alimentação, comecei a misturá‑la com carne picada e, durante anos, manteve-se um hábito ocasional, sem evoluir para nenhum outro que não fosse uma tentativa de comer sopa, um legume cru, um tempero com salsa.
Simultaneamente, a presença e convívio constantes com animais em casa, bem como o abandono regular na minha área de residência e os consequentes cuidados que a minha família lhes tentava dar dentro do possível, ensinou-me a vê-los como o melhor do mundo, vítimas fáceis das piores facetas humanas. As minhas ideias precoces acerca da superioridade animal também não era algo que se discutisse nos intervalos das aulas nem eram populares, pelo que imaginei serem invulgares e com poucos aderentes.
Existia igualmente nesta mesma zona um matadouro no qual por vezes ficavam os animais nos camiões durante a noite. Ouvia as lamentações e gritos deles e tristemente confesso que considerava um mal necessário. Nunca me passou pela cabeça que era possível deixar de os torturar e comer os seus cadáveres. Infelizmente não os via da mesma forma que via os cães e os gatos; todavia sentia um desejo ``secreto``: «Quem me dera ser vegetariana e não ter animais mortos a pesar‑me na consciência… mas é impossível, tem que se comer carne pois os vegetais não chegam para o nosso organismo ser saudável…».
Esta situação manteve‑se mesmo com novas informações retiradas de leituras acerca de alimentação saudável: todas referiam carne e peixe e consumi-los era um dado adquirido sem alternativa. Aliás, deixar de o fazer era mesmo perigoso segundo o que lia e, por esta altura, a minha estima pela saúde superava já tudo, mesmo a preciosidade da vida de um animal.
Passou‑se a Faculdade, que, mesmo construída de raiz nunca teve nem tem cantina e obrigava os alunos a recorrer ao centro comercial ou ao bar onde era quase impossível ter contacto com alimentos saudáveis.
Foi só em 2003 que cada vez mais me começou a custar ingerir carne. Pensava no animal vivo e agora ali, um pedaço do seu cadáver no meu prato… Que direito tinha eu de reclamar uma vida? Comecei a não conseguir mastigar pois também o paladar e a textura tinha deixado de ser o que era antes dos antibióticos e hormonas que injectavam aos animais. Se desde sempre me enojaram pedaços de cérebro de animais, patas, línguas, orelhas, etc., etc., então por que comia eu bocados de carne de vaca, coxas de frango? Comecei a não comer carnes vermelhas e passei ao peru e frango. Mas que solução era essa? Então uma ave seria menos do que um mamífero? E não me custava igualmente a mastigar? O peixe nunca fora opção, apenas marisco, mas então as notícias sobre a poluição tremenda das águas e a acumulação desta na fauna começaram a surgir ao mesmo tempo que me apercebia que também eram animais. Que saída me restava?
Como sempre me tinha interessado pela defesa animal e ambiental, comecei a dedicar mais tempo, agora já na Internet, à pesquisa acerca desses assuntos em sites de associações que considerava credíveis, como a PETA, a ANIMAL e a LPDA. Fiquei a conhecer outras formas de exploração animal, nomeadamente a experimentação em animais de cosméticos e produtos de limpeza e a horrenda indústria das peles, da qual já tinha umas noções.
Reparei que todas elas defendiam o vegetarianismo, um conceito estranho para mim. A única coisa que pensava que sabia acerca disto era que as pessoas ficavam magras, pálidas e fracas. O que comiam essas pessoas? Couves?? O que comem em vez de carne e peixe? Este foi o momento decisivo pois comecei a ler acerca dos alimentos alternativos como a soja, o tempeh, o tofu e o seitan. As expressões com mais impacto foram “longevidade, combate ao cancro e doenças cardiovasculares”. Deparei com imensas imagens de crueldade contra os animais e informações sobre a sua vida familiar, social e emocional. Comecei a sentir‑me mal comigo mesma por os comer, por ter tentado ignorar quem estava no meu prato e revoltada por ter acreditado nas informações dos médicos. Como era possível eu nunca ter tido conhecimento destes alimentos que fazem tão bem depois de tantas leituras?! Depois percebi o poderio da indústria da carnificina e tudo ficou claro.
Comparei dados, imprimi informações, analisei tabelas nutricionais, enviei a amigos e li, li, li muito e dei a ler à minha mãe que sempre me ensinara e partilhara comigo o amor pelos animais. Procurei receitas e passava muito tempo no site do Centro Vegetariano a achar tudo fabuloso, com combinações de alimentos que nunca imaginara! Confesso que foi um deslumbre e parecia bom demais para ser verdade. «Quem me dera conseguir ser vegetariana! Mas como me desabituar de 25 anos de carne? E a mãe de 50?»
Decidimos começar a experimentar esses substitutos que foram fáceis de encontrar: primeiro os mais análogos à carne (hambúrgueres de soja, chouriço de soja, salsichas de soja) surpreendentemente semelhantes e muito saborosos; depois o tofu e o seitan fresco. Não gostei de tofu e a minha mãe não gostou de seitan… Ficámos um pouco desiludidas, mas não desistimos. Percebi que, já que não sabia cozinhar, não tinha temperado bem as coisas e não podia esperar que o meu organismo aceitasse alimentos diferentes à primeira vez. Era saúde a mais para um organismo que precisava urgentemente de ser desintoxicado. Continuei a experimentar e a insistir; aprendi a cozinhar e ambas começamos a gostar e a sentirmo‑nos muito mais leves, com mais energia e mais saudáveis.
Em Agosto de 2004 decidimos que já estávamos prontas para deixar de comer animais e desde aí nunca mais o fizemos. Anunciei aos meus amigos que as tentativas e experiências tinham acabado e que era “oficialmente” e orgulhosamente vegetariana juntamente com a minha mãe. Nos primeiros tempos havia certas vontades de comer carne, especialmente nas suas formas mais escondidas: fumados, mas recorrendo às alternativas vegetais, ficávamos satisfeitas. Nunca sofremos nenhuma recaída. Aprendemos a usar os legumes em todo o seu potencial de combinações, bem como a fruta e os cereais integrais.
Naturalmente ficámos também alerta em relação aos lacticínios e ovos. Sofrendo de artrite reumatóide, a minha mãe sempre foi aconselhada pelos médicos a consumir lacticínios por causa do cálcio e ela sempre se sentiu mal, agoniada, com azia, enjoada, apesar dos produtos magros. Comunicava isto à nutricionista durante anos e ela insistia sempre na mesma tecla do “tem que ser”. Perguntava‑me como era possível os médicos desconhecerem, ou pelo menos omitirem aos pacientes que os legumes de folha verde estão repletos de cálcio e que o nosso organismo o absorve muito melhor do que através do leite contaminado com pus e afins destinado a bezerros?! De que adianta algo ter cálcio se o nosso organismo não o absorve da melhor forma e ainda por cima é contaminado com antibióticos e outros? Por isso resolvi comprar leite de soja adoçado com raiz de chicória madura, queijo vegano e yofu com fruta (iogurtes de soja) enriquecidos com cálcio. A minha mãe não queria acreditar no bem‑estar que sentia e nas quantidades de cálcio iguais às do leite de vaca, sem necessidade de maltratar animais nem ingerir substâncias estranhas ao nosso corpo. Eu nunca gostei de queijo e por isso fiquei-me pelo yofu e leites de soja, aveia e arroz, produtos que não dispensamos no dia‑a‑dia e que adoramos.
Hoje em dia estamos diariamente gratas pela escolha que fizemos e recordamos o passado como uma época obscura durante a qual desconhecíamos a realidade e não víamos para além do que a maioria via. Principalmente sentimos a consciência tranquila.
Os nossos aparelhos digestivos e metabolismos lentos começaram a melhorar a olhos vistos, a minha pele deixou os problemas de oleosidade e alguma acne, os problemas de obstipação de uma vida inteira da minha mãe desapareceram completamente e as minhas constipações e gripes regulares nunca mais apareceram. Não ficámos mais magras (com alguma pena, neste caso), mas temos muita mais energia e cores saudáveis na nossa pele.
Não podemos dizer que somos veganas pois ocasionalmente comemos ovos caseiros provindos de galinhas de uma pessoa conhecida e que as trata bem e por vezes ainda consumimos chocolate com leite, assim como ainda nos resta muito calçado e vestuário de origem animal, mas fazemos escolhas informadas e compramos maioritariamente produtos apenas com ingredientes vegetais, incluindo cosméticos e produtos de limpeza que não são testados em animais.
O deslumbre por um dos acontecimentos mais importantes na minha vida ainda não passou e todos os dias acordo a querer ser vegetariana outra vez, mais uma vez, sempre. Mas não chega. Quero divulgar informações a quem não as tem e dar‑lhes a conhecer tudo o que aprendi. Realizei um sonho que sempre me pareceu impossível e ainda hoje me admiro com a facilidade e suave transição.
Sei que o vegetarianismo me ajuda a ser uma melhor ambientalista, a respeitar mais os animais e a ser mais saudável. Só espero conseguir sempre passar esta ideia de forma eficaz ao maior número possível de pessoas durante a minha vida e ajudar no que puder.
(Ana e Lourdes Soares residem no Porto e são vegetarianas desde Agosto de 2004.
Ana é Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Ingleses e Alemães e Lourdes é bordadeira e pintora amadora.)
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